O texto abaixo foi sugerido pela Tamie, do G1, logo após a leitura do texto "Se eu fosse eu", da Clarice Lispector.
Fiquem atentos, pois, na internet, este texto é creditado à Clarice Lispector, sendo que na verdade é da Marina Colasanti, grande amiga de Lispector... Abaixo, a primeira foto é de Marina (ainda viva) e a segunda de Clarice (já falecida)
EU
SEI, MAS NÃO DEVIA
Marina Colasanti
Eu sei que a
gente se acostuma.
Mas não
devia.
A gente se
acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra
vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo
se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não
abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E
porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar,
esquece a amplidão.
A gente se
acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café
correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque
não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque
já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A
deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se
acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a
guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E
aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de
paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de
guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a
esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A
sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser
ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a
pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para
ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em
que se cobra.
A gente se
acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver
anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao
cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,
desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se
acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao
choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das
músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da
água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a
não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter
sequer uma planta.
A gente se
acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas,
tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um
ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a
gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a
praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto
do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando
no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que
fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono
atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma
para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da
baioneta, para poupar o peito.
A gente se
acostuma para poupar a vida.
Que aos
poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(in "Eu
sei, mas não devia" - Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1996)
A versão que a Tamie nos havia presenteado era uma versão em português de Portugal. Publiquei a versão em português brasileiro!
Abraços fraternos,
Giba